Por Kathiuça Bertollo e André Borges Procópio
Introdução
O jornal A Sirene conforma-se como voz das atingidas e dos atingidos pelo rompimento criminoso da barragem de Fundão em Mariana-MG, Brasil. O jornal aborda a mineração na região do quadrilátero ferrífero de Minas Gerais dando ênfase à questão ambiental, ao resgate da memória e da cultura, e denuncia os impasses e violações de direitos das populações e comunidades atingidas ao longo dos 600km de destruição e devastação causadas pelos rejeitos de minério de ferro.
Este instrumento de informação contra-hegemônica é construído pelas atingidas e atingidos, com o apoio de uma equipe técnica, e se conforma em uma potente ferramenta de divulgação da realidade vivenciada ao longo dos 06 anos do rompimento/crime. A perspectiva jornalística assumida demonstra as contradições próprias do sistema capitalista e as consequências da atuação das mineradoras Samarco/Vale/BHP Billiton e da Fundação Renova em relação ao rompimento/crime e ao processo de reparação dos danos e reconstrução das comunidades destruídas. Sinaliza ainda, que é necessário repensar o atual modelo de mineração e pautar uma nova ordem societária.
O contexto de surgimento e os desafios para a continuidade do Jornal ‘A Sirene’
O estado brasileiro de Minas Gerais figura na história mundial, no passado, como uma região explorada pelas metrópoles sob os marcos da colonização e escravização do povo negro, ao que se refere ao ouro, diamantes e demais metais preciosos, e no presente, como região explorada pelas nações imperialistas, em fase de capitalismo monopolista e sob os marcos da dependência e superexploração da foça de trabalho, ao que se refere ao minério de ferro e outros minérios e minerais presentes no seu solo. A maneira como esse território é apropriado e explorado nos diferentes tempos históricos impõe marcas sangrentas à região (Bertollo, 2017).
É a partir desse contexto que se inscreve e decorre o rompimento/crime da barragem de Fundão, ocorrido em Mariana-MG em 05 de novembro de 2015, que imediatamente ceifou 19 vidas – além de ocasionar um aborto, destruiu completamente as comunidades marianenses de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, a comunidade barra-longuense de Gesteira, além do rastro de destruição e morte ao longo da bacia do rio Doce. Passados 07 anos, permanece como um crime que se renova.
Diante de tal cenário, uma nova realidade de vida se impôs às/aos atingidas/os. De um momento para outro perderam os elementos que conformavam o âmbito material e imaterial de suas vidas, rotinas, histórias familiares e comunitárias. A repercussão midiática foi intensa. A mídia hegemônica difundiu exaustivamente o ocorrido, no entanto, as reportagens, entrevistas e programas expuseram as/os atingidas/as e não tocaram no cerne da questão que desencadeou o rompimento/crime, isto é, o modelo produtivo fundamentado na superexploração da força de trabalho sob os marcos do capitalismo dependente em período de boom e pós-boom das commodities.
Inúmeras foram as divulgações midiáticas que buscavam preservar a imagem das mineradoras responsáveis pelo rompimento/crime, que buscavam eximir o Estado e seus âmbitos legislativos e fiscalizatórios das suas responsabilidades. Predominou a versão de que tudo não passou de uma grande tragédia, algo imprevisível e inevitável, uma fatalidade e dessa forma as/os atingidas/os foram violentados em seus direitos mais elementares de existência, uma vez que se tornaram ‘celebridades de desgraça’.
Meu primeiro contato com a mídia foi quando ainda estava no meio da lama, lutando para socorrer as pessoas. […] no céu, outra tempestade, só que de helicópteros da Globo, SBT, Record. Nenhum nos ajudou. […] por que nos fazem perder tempo, reviver coisas tão dolorosas se já sabem as respostas que querem? […] às vezes, pedem para fazer uma cara triste para as fotos e aproveitam quando choramos. […] eles só publicam o que querem. […] eles nos levam a expor coisas desnecessárias. […] eles têm muito poder, que prejudica e às vezes ajuda (Santos et al., 2016, p. 13).
Diante de tal cenário, as/os atingidas/os logo percebem a necessidade e a urgência de terem sua voz difundida e ouvida pela sociedade, não apenas como sujeitos entrevistados em reportagens que deturpavam suas falas e os expunham desrespeitosamente, mas como sujeitos protagonistas da divulgação do que realmente ocorreu, de como ocorreu, do significado e consequências em suas vidas desde então.
É nesse contexto que o jornal ‘A Sirene’ nasce. E desde o seu nome já denuncia a ausência de sirenes nos complexos produtivos e na região de Bento Rodrigues, comunidade localizada a poucos quilômetros da barragem e que foi completamente destruída, o que não permitiu que todas/os soubessem do rompimento/crime em tempo de salvarem suas vidas. ‘A Sirene’ ecoa, divulga, denuncia e luta por reparação e indenizações justas. Desde fevereiro de 2016, “as páginas d’A Sirene ecoam, como jornalismo, a urgência que nunca tocou quando a lama chegou” (A Sirene, 2019, p. 05).
Minha sirene foi Deus. Via a lama a cinco metros de onde estava; corri muito, se não corresse morreria. Salvei minha irmã de 70 anos, carreguei ela no colo. […] Minha sirene foi a gritaiada na praça, a afobação do povo. Não deu tempo de correr. Quando vi a lama já estava na minha garagem. Eu, meus filhos e meu sobrinho nadamos na lama grudenta em sig-zag, fugindo da correnteza, até chegar em um ponto firme (Marques et al., 2016, p. 03).
O jornal é criado por atingidas/os pelo rompimento criminoso da barragem de Fundão e grupos de apoio: o Coletivo #UmMinutoDeSirene[i], a Arquidiocese de Mariana, o Instituto de Ciências Sociais Aplicadas – ICSA, a Universidade Federal de Ouro Preto ¬– UFOP e a agência mineira de fotografia NITRO Histórias Visuais.
Dentre as diversas vozes, destaca-se aquela dos atingidos e dos atores da sociedade civil e de movimentos sociais em torno da necessidade de se criar um espaço próprio de fala e de reivindicação. Essa luta iniciada imediatamente após o desastre-crime culminou na formação de um coletivo denominado “#UmMinutodeSirene” do qual resultou a formatação de um jornal independente, de nome A Sirene, que busca acompanhar o andamento das investigações e da recomposição dos direitos perdidos da população atingida e informar a todos sobre esse andamento. Tal jornal se configurou como um dos principais instrumentos de disseminação da fala dos atingidos. A definição da pauta, os textos e as imagens são inteiramente feitas por um grupo de atingidos e com apoio de representantes da sociedade civil e de estudantes do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Ouro Preto (Passos et al., 2017, p. 283).
Ainda nos primeiros meses de 2016, trâmites judiciais desencadeados pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) – 2ª Promotoria de Justiça da Comarca de Mariana-MG, permitiram e garantiram a destinação de recursos financeiros arrecados para a criação e manutenção do jornal. Com distribuição gratuita, começou com uma tiragem de 2.000 exemplares, posteriormente passou a distribuir 3.000 exemplares. Além de estar disponível em formato digital, em site próprio, o jornal também é divulgado em redes sociais para maior alcance de público. Atualmente, o jornal se mantém através de doações financeiras advindas de campanha de arrecadação e trabalho voluntário considerando a finitude dos recursos a ele destinados quando de seu surgimento.
Desde então, ‘A Sirene’ cumpre com a proposta de fazer circular informações de interesse das/os atingidas/os, uma vez que é construído por elas/eles e para elas/eles. Busca a preservação de suas memórias e cultura, a visibilidade das lutas travadas, ecoar a voz das comunidades, possibilitar a sua auto-organização e o fortalecimento de suas reivindicações.
Entendemos, valorizamos e lutamos pela auto-organização dos atingidos. Por isso, todas as pautas foram determinadas por aqueles que se prontificaram a participar. O trabalho foi desenvolvido por equipes compostas por atingidos, jornalistas, fotógrafos e voluntários que trabalharam em conjunto. Todo o processo, desde a escolha das pautas até a finalização, foi proposto, acompanhado e validado pelos atingidos. A Sirene é um jornal feito pelos atingidos para os atingidos. Mais uma ferramenta de apoio para que a comunicação e a preservação das suas memórias se tornem seus patrimônios. Um convite a todos para não esquecer (Marques et al., 2016, p. 2).
Os rejeitos se espalharam por toda a bacia do rio Doce chegando à costa marítima do estado do Espírito Santo e causaram degradação ambiental e social por todo percurso. A comunicação entre as/os atingidas/os e as comunidades se colocou como um desafio a ser perseguido. “o nosso jornal A Sirene, coisa muito importante entre as pessoas, ação de emitir e receber mensagens, importante para esclarecer todo mundo” (Marques et al., 2016 p. 02). A partir do entendimento sobre a importância de ecoar suas vozes.
[…] voluntários e os próprios atingidos que se juntam para debater problemas e as possíveis soluções. São os atingidos que saem em campo para pesquisar, reescrever, fotografar e mostrar a história pelo olhar deles, pelas críticas deles, pelos segredos deles, pelos questionamentos deles e apontando as soluções que eles querem para o rumo das vidas deles (Nolasco, 2016 p. 02).
A partir da perspectiva exposta pelas/os atingidas/os acerca de suas vivências, o jornal constitui-se também em um espaço de resgate e preservação de memórias e da cultura que a lama não conseguirá apagar – uma vez que, apesar de toda a destruição, suas histórias e trajetórias, suas tradições e riquezas culturais são bens imateriais que são zelosa e cotidianamente protegidos, resgatados e explicitados, o que reforça ainda mais o cunho político do jornal, colocando-o como importante instrumento de denúncia, reivindicações de direitos e um potente instrumento da classe trabalhadora no contexto da luta de classes, mostrando as contradições desta sociabilidade em que a classe dominante explora, oprime e destrói cotidianamente as classes em antagonismo e a natureza. Nesse bojo, está presente uma crítica aos aparelhos estatais e jurídicos que tendem a amenizar e apaziguar lutas e resistências coletivas.
‘A Sirene’ aborda de modo crítico e denuncia o atual modelo de mineração e as suas consequências nos âmbitos ambiental, político, econômico, cultural e social, uma vez que, a proposta desse veículo de comunicação é dar voz às/aos atingidas/os em suas lutas no processo de reparação e reconstrução dos distritos/comunidades destruídas, bem como, de suas vidas. “A gente explica o tempo, os nomes, as palavras, as nossas lutas e as notícias que escreveram sobre nós. A gente fala. E do nosso jeito” (Novais et al., 2016, p. 10).
Temas abordados no jornal ‘A Sirene’: âmbitos das reivindicações, denúncias e das lutas travadas
Meio ambiente
A voz que ecoa aponta que “a natureza, também atingida, sofre com o descaso das empresas responsáveis pelo maior crime socioambiental da história do país” (Sena, 2017, p. 16). Na seção “A gente explica”, é evidenciado o que entendem por meio ambiente: “1. a lama arrastou com ela 2. lugar que deve ser preservado 3. local em que vivemos, que envolve todas as coisas vivas e não vivas” (Dias et al, 2016, p. 7). E sobre o significado de barragem, rejeito/lama e tóxico, apontam:
[…] barragem: 1. sensação de perigo 2. bomba 3. pesadelo de várias comunidades brasileiras por várias décadas 4. irresponsabilidade. […] rejeito/lama: 1. poluição 2. sobra não aproveitada, barro 3. monstro criado pela mineração que nos levou à ruína total, ou seja, destruiu toda a nossa casa 4. ‘trauma’. […] tóxico: 1. que mata; faz mal à saúde 2. coisa ruim que destrói vidas, principalmente o meio ambiente 3. poluição. (Maia et al., 2016, p. 13).
É importante mencionar que o meio ambiente já era destruído na região de Bento Rodrigues, dado o extrativismo minerário e a lama tóxica represada na barragem – o que contaminava o solo, os mananciais de água, etc. No entanto, com o rompimento/crime da barragem, a destruição e contaminação foram exponenciadas, uma vez que se estendeu de Minas Gerais ao litoral do Espírito Santo, adentrando o oceano. O solo, a água, o ar, a fauna e a flora, constituintes de tudo o que garante e possibilita a vida humano-genérica foi contaminado, assassinado.
Ainda, mencionam sobre o cultivo de alimentos “[…] Também tinha plantação de milho, feijão, mandioca, além do pomar e hortaliças”. (Queiroz et al., 2017, p. 3). Não apenas a mata nativa da região, mas plantações que serviam para o sustento familiar, como fonte de renda e como manutenção de um estilo de vida mais saudável foram destruídas. Afirmam: “Nós vamos à feira para comprar os produtos que tínhamos no nosso quintal. Vamos para adquirir legumes, frutas e verduras que colhíamos em nossas terras e que, hoje, temos que comprar sem saber da origem ou qualidade” (Muniz et al, 2017, p. 11).
Todo o ecossistema que teve contato como os rejeitos foi contaminado. Afirmam que “antes havia a liberdade de desfrutar da natureza de forma respeitosa e benéfica”, no entanto, apreenderam que as mineradoras “utilizam a natureza visando ao lucro acima de qualquer coisa” e que “desfrutam da liberdade causada pela impunidade”. Apesar de não ser possível mudar o que aconteceu, enfatizam que “os danos deveriam ser minimizados por aqueles que os causaram e isso não tem sido feito. Na realidade, criam-se ainda mais danos, antes impensáveis pelas populações atingidas” (Anunciação et al, 2020, p. 7).
Pode-se afirmar que a posição crítica assumida pelo jornal se contrapõe ao discurso do desenvolvimento sustentável tão propagado pela lógica burguesa de compreensão e enfrentamento da chamada “questão ambiental”. Nesse sentido, se alinha à formulação de Loureiro (2012) quando o autor nos aponta para a construção histórica do conceito de desenvolvimento sustentável, que advém da Organização das Nações Unidas (ONU), e que na sua essência reitera e se torna um conteúdo reprodutor das práticas econômicas capitalistas.
Economia
Os/as atingidos/as relatam que não dependiam da mineração extrativista e que possuíam uma renda que lhes permitia uma sobrevivência digna. Os rios, a costa marítima e as terras eram os seus meios de trabalho e sustento, no entanto, após o rompimento/crime da barragem diversos agravos no âmbito econômico surgiram em suas vidas ocasionando a diminuição ou o fim das fontes de renda.
Para as/os moradoras/res de Barra Longa-MG, o “rompimento da barragem de Fundão causou danos severos e contínuos a todas as formas de trabalho e produção de renda no município” (AEDAS, 2021, p. 15). Na matéria “A vida ficou mais cara”, as/os moradoras/res de Rio Doce-MG destacam que os preços do comércio local aumentaram expressivamente após o rompimento/crime. Esse aumento pode estar ligado à chegada das empresas contratadas pela Fundação Renova para atuar na região em atividades de reparação.
A migração forçada da área rural para a urbana também desencadeou impactos econômicos.
A nossa despesa, lá no Bento, era um nível; aqui é outro, bem mais alto. Lá, nós gastávamos um botijão [de gás] a cada três, quatro meses; aqui, todo mês, é um. Lá, eu tinha aminha renda, tratores e uma chácara produzindo. Costumo brincar que eu era rico e não sabia. Hoje, o meu cartão pouco dá pra abastecer o carro. Lá, eu tinha galinhas e não gastava nada pra cuidar delas, porque comiam do milho que eu plantava. Banana, alface e couve: era só pegar da horta e dar para elas, e assim era também com os porcos. Hoje, eu nem tenho galinhas mais. Os animais que eu tenho aqui só posso tratar com ração e isso altera mais a nossa renda (Pascoal et al, 2018, p. 14).
A partir de tal contexto, é pertinente resgatarmos as formulações de Marini (2005) quando o autor nos explicita e reflete sobre a condição de capitalismo dependente e de superexploração da força de trabalho enquanto seu fundamento. Esses determinantes conformam e estruturam a condição e vida e sobrevivência da classe trabalhadora latino-americana, brasileira, e no cenário que se impôs pós-rompimento criminoso em muito se agravam no território e sobre as e os direta e indiretamente atingidos.
Saúde
A imediata contaminação do solo, da água e do ar, e as obras de reparação realizadas nos territórios destruídos são explicitadas como elementos adoecedores da saúde física e mental das populações. Pesquisa realizada com 500 moradores barralonguenses explicita que “35% dos entrevistados tiveram a saúde piorada após a lama. Entre os problemas estão: doenças respiratórias (40%), infecções de pele (15,8%), transtornos psicológicos (11%), doenças infecciosas (6,8%) e oftalmológicas (6,3%)” (Sena, 2017, p. 2).
As comunidades imediatamente destruídas eram pequenas, de forma que todos eram próximos e se conheciam. A morte das/os que foram levadas/os pelos rejeitos gerou um sofrimento coletivo e adoecimento psicológico. Além do sofrimento pelo luto, o trauma pelo rompimento/crime da barragem, os desgastes ocasionados nas lutas por indenizações, a nova rotina imposta devido a mudança para a área urbana de Mariana-MG, os preconceitos vivenciados, dentre outros elementos, ocasionam tal contexto.
Importa evidenciar, que o cenário pandêmico da Covid-19 tem acentuado tais processos de adoecimento, pois impacta diretamente no processo de reparação e reconstrução dos territórios destruídos.
Para a população atingida, a pandemia agrava todas as incertezas que vivenciam desde 2015, em decorrência do crime do rompimento da barragem de Fundão, que causou a vivência de uma crise, aumento de vulnerabilidade, das desigualdades, do risco social, piora na saúde, perda de seus lares, incerteza sobre seus futuros (Pacheco e Silva, 2020, p. 5).
Relações Sociais
Mudanças de ordem física e psicológica foram impostas. Novos locais, casas que não são as suas, novos vizinhos, novos hábitos, e tudo aquilo que é inerente à vida urbana, passou a fazer parte da vidas das/os atingidas/os pós rompimento/crime. Além disso, se veem “obrigados(as) a se encaixarem em uma rotina exaustiva de reuniões, audiências, conversas, preenchimento de documentos, formulários, encontros, manifestos e a luta diária em busca da reparação, o cotidiano se torna cada vez mais duro” (Carmo e Pascoal, 2020, p. 16). Em meio a tal contexto são denunciados: o machismo, o preconceito e o racismo.
Além do desafio de não serem reconhecidas como trabalhadoras pelas empresas causadoras dos danos (Samarco, Vale e BHP Billiton) ao serem consideradas como dependentes dos maridos no processo de cadastramento, as mulheres também sofrem com o assédio dos trabalhadores das terceirizadas contratadas para atuar nas comunidades. A chegada de tantos homens nas cidades de Barra Longa e Rio Doce alterou o cotidiano dessas mulheres e trouxe novos problemas para regiões que já sofreram tanto com o crime das mineradoras (Oliveira, Pinto e Torres, 2019, p. 7).
Assumimos o entendimento de que o machismo, a opressão de gênero sobre as mulheres e o patriarcado são estruturantes do modo de produção capitalista. São valores e posições que servem unicamente para reprimir qualquer possibilidade de relação social igualitária e justa entre os indivíduos e as classes sociais a que pertencem. Conforme D´Atri & Assunção (2017) “a combinação entre opressão e exploração é o que potencializa e renova as formas de exploração e de dominação capitalista no modo de produção atual” (p. 13). Nesse sentido, as mesmas autoras afirmam que “[…] não é possível considerar um movimento feminista policlassista porque quando chegam os problemas de classe os interesses se confrontam, porque são inconciliáveis” (p. 24). Essa é a situação que as mulheres atingidas vivenciam no cotidiano da reivindicação de seus direitos.
Ainda, no jornal é denunciado que o preconceito não parte unicamente das mineradoras e Fundação Renova, parte também dos demais moradores dos municípios atingidos, o que evidencia a alienação e estranhamento presentes nas relações sociais sob a ordem hegemônica do capital.
Algumas pessoas afirmam que os atingidos estão “numa boa”, “nadando em dinheiro”, tem muito mais que tinham, “do bom e do melhor”. Uma maravilha! Esse é o grande equívoco da história. Todos os atingidos são julgados por critérios baseados na falta de informação, portanto, carregados de preconceito. Falta a quem pensa assim conhecimento, reflexão e fundamento sobre a real situação de muitos atingidos. Isso leva a atitudes de rejeição, intolerância, suspeita e má vontade gratuita contra pessoas que só querem suas vidas de volta. Assim, questões como cartão alimentação, pagamentos de aluguéis, antecipação de indenização tornam-se mais importantes que os problemas enfrentados e são polemizados de forma desumana, que rotula, classifica, desrespeita e exclui. Nossas crianças são chamadas de pé de lama. Idosos sentem-se rejeitados. O mais triste é ouvir que a lama deveria ter chegado à noite e matado todo mundo. Até quando será ignorado o sofrimento das pessoas que não se conformam com uma situação imposta pelas circunstâncias? (Peixoto e Tropia, 2016, p. 10).
A matéria “Além de rejeito: preconceito e racismo” traz depoimentos em que as/os atingidas/os denunciam a perseguição política às/aos militantes, o racismo institucional e a discriminação sofrida por parte da Fundação Renova.
Nunca foi fácil ser negro no Brasil, mas, antes do crime da Vale, Samarco e BHP Billiton, eu não precisava me preocupar com o racismo. Eu não sentia essas coisas na pele, porque eu vivia no meu mundo, quietinha no meu cantinho, lá no meu alto de morro. Após o crime, eu precisei ocupar espaços que, até então, não eram meus. Desde então, eu tenho sentido, na pele, no corpo e na alma, a chicotada da elite. A cada passo que eu dou, eu vejo o preconceito e o racismo. A Fundação Renova nos persegue por sermos negros (as), sermos do alto do morro e militantes. Isso não tem sido fácil (Silva et al, 2020, p. 8).
Importa ressaltar que o estado de Minas Gerais é marcado secularmente pela requisição da força de trabalho do povo negro para o trabalho forçado nas minas de ouro e diamantes através da escravização. Do passado colonial à contemporaneidade esta região perpetua marcas sangrentas sobre a maioria de sua população. O rompimento criminoso da barragem de rejeitos de Fundão é mais um fato histórico que demonstra que o racismo é estruturante do capitalismo, uma vez que os distritos diretamente atingidos eram comunidades em que a classe trabalhadora residia e construía seu modo de vida. E nestas, conforme Wanderley (2015), a população era majoritariamente negra.
Patrimônio Imaterial
Os danos causados ao patrimônio imaterial, que engloba a cultura, tradições, festas, esporte, lazer e todos os demais elementos que contribuem para a formação das identidades pessoais e comunitárias conformam uma dimensão que não tem preço, uma vez que, apenas as/os atingidas/os sabem e podem mensurar o significado desses âmbitos em suas vidas e histórias. Nesse sentido, falar em reparação imaterial pressupõe participação efetiva e ampla ao que se refere ao resgate e preservação da cultura e tradições.
Na vastidão territorial do país, a variada diversidade cultural fundamenta as tradições comunitárias. Os 600 km marcados pela lama de rejeitos comportam múltiplas manifestações étnico-culturais e sociais. A fim de repará-las e resgatá-las foi firmado, no início do processo de reparação, o Termo de Compromisso Preliminar. Documento elaborado emergencialmente pelo Ministério Público Estadual e assinado pela Samarco, que previa ações de reparação para o patrimônio religioso, mas apenas nos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo no município de Mariana-MG, e no distrito de Gesteira em Barra Longa-MG, de forma que não oferecia uma ampla abrangência “ante o conjunto dos bens culturais atingidos direta e indiretamente no território do Gualaxo do Norte” (Pinto et al, 2017, p. 11).
Na matéria “Tradição em risco” é mencionado que muitas/os moradoras/es de Rio Doce-MG aprenderam a garimpar e pescar ainda jovens. “Era ali, na beira do rio, que os(as) garimpeiros(as) e pescadores(as) mais velhos(as) ensinavam o ofício e perpetuavam o seu legado”. Mas, esse “costume que era naturalmente passado de geração a geração corre o perigo de ser extinto, já que a contaminação das águas fez com que os(as) atingidos(as) buscassem outras alternativas de trabalho e abandonassem as idas ao rio” (Coelho et al, 2019, p. 10).
O estilo de vida saudável, que também deve ser reconhecido como patrimônio imaterial, já não é mais possível de ser vivenciado. Apesar dessa ofensiva sobre as tradições, algumas, fortemente enraizadas nas comunidades e populações, ainda resistem, como é o caso dos festejos religiosos, tão comuns em Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo.
Antes do rompimento, as comemorações sempre foram regadas a muita alegria, união, música e comida boa, até o dia amanhecer. Hoje, o cenário é diferente, reunir toda a comunidade tem ficado cada vez mais difícil, mas, mesmo assim, os(as)atingidos(as) resistem, para não deixar que essa tradição acabe (Cássia et al, 2019, p. 14).
Patrimônio Material
Suas casas, terras, plantações, animais, comércios, meios de trabalho, bens de uso coletivo como ruas, estradas, escolas, junto às vidas que foram ceifadas pelo rompimento/crime da barragem, se mostraram como as perdas mais evidentes. A partir de uma mudança brusca e violenta as/os atingidas/os passaram a sobreviver espalhados pelos hotéis, ruas e casas provisórias do centro urbano de Mariana-MG.
[…] A barragem foi a pior coisa que aconteceu na minha vida. Trabalhei tanto, lutei tanto… quero minha casa. […] A lama veio e acabou com meus planos e minha paz […]. Eu era muito feliz debaixo das árvores do meu quintal (Peixoto e Tropia, 2017, p. 5).
Em fevereiro de 2018 a Fundação Renova recebeu uma pauta de reivindicações das quais destacamos: o direito à moradia digna e infraestrutura na cidade e na zona rural; a participação e intervenção das/os atingidas/os em todo o processo da reforma das casas, com livre acesso às mesmas.
As reivindicações extrapolam a questão dos reassentamentos, englobam os prejuízos causados pela presença de maquinários e obras nas localidades parcialmente atingidas, tal como vivenciado em Barra Longa-MG, em que “203 casas precisariam de reforma, outras 59 deveriam ser reconstruídas, e, ainda, 23 estavam em estado de risco de emergência e necessitavam de uma solução urgente” (Conceição et al, 2018, p. 4).
Em meio a esse contexto que perdura por 06 anos, incertezas são recorrentes. Em janeiro de 2020 uma nova decisão judicial estabeleceu que a Fundação Renova teria até o dia 27 de fevereiro de 2021 para a conclusão de todas as obras. Porém, passado esse prazo, na edição de número 59, na matéria “Cadê a chave da minha casa?” é mencionado que:
Essa foi a pergunta que os(as) atingidos(as) fizeram no dia 27 de fevereiro, data limite para a entrega dos reassentamentos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. O prazo, no entanto, foi, pela terceira vez, descumprido e as obras estão longe de ser finalizadas. Apenas cinco casas foram construídas no Novo Bento, enquanto, no terreno de Lucila, as obras seguem sem que nenhuma casa tenha sido erguida. O dia, que era para ser de alegria, marca, mais uma vez, a frustração e a desesperança dos(as) atingidos(as) ao verem distante o sonho de voltar para casa (Ferreira et al, 2021, p. 8).
No dia 15 de setembro de 2021, ‘A Sirene’ lançou uma campanha virtual de denúncia à Fundação Renova e à morosidade dos processos de reparação e construção, cujo título ‘6 anos por um tijolo!’ explicitava a demora no início das obras na comunidade de Paracatu de Baixo. Tal situação de morosidade permanece neste ano de 2022. Estamos em vésperas de completar 07 anos do rompimento/crime e nenhuma casa foi entregue, as obras de reconstrução dos distritos e os processos de reparação seguem de modo moroso e perpetuando violências e violações de direitos sobre as e os atingidos.
Considerações finais
Procuramos evidenciar que o jornal ‘A Sirene’ é a voz das/os atingidas/os pelo rompimento criminoso da barragem de Fundão – de propriedade das mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton. Por meio de suas matérias desencadeia e fomenta o processo de aproximação e reconhecimento entre as/os atingidas/os, as comunidades, os municípios e os estados que foram marcados material e subjetivamente pelo rastro de rejeitos.
Por isso, ‘A Sirene’ é um potente instrumento de denúncias e registro das lutas travadas cotidianamente por homens e mulheres que jamais imaginavam se tornar “atingidos e atingidas”, que jamais tiveram alguma orientação sobre o perigo a que estavam submetidas suas comunidades, seus bens materiais e imateriais, suas condições de saúde física e mental, suas relações sociais, culturais e tradições. Estão há quase 07 anos procurando compreender o que significa, e aprendendo a se reconhecer enquanto tal. Nesse percurso, permeado por morosidade e entraves jurídicos, pela irresolutividade por parte das mineradoras causadoras, bem como pela Fundação Renova, o jornal ‘A Sirene’ se constitui em um potente instrumento de informação contra-hegemônica e de resistência no contexto de luta de classes na mineração extrativista no Brasil.
O principal desafio a ser enfrentado atualmente pelo jornal ‘A Sirene’ é a sua continuidade de existência. Nesse sentido, é fundamental a articulação entre diferentes sujeitos coletivos, movimentos sociais, entidades sindicais, universidade e atingidas/os. A sirene que não tocou no momento do rompimento/crime, não pode, passados 07 anos e em contexto de necessidade cada vez maior de articulação e fomento das denúncias acerca do crime que se renova cotidianamente, ser silenciada. O jornal ‘A sirene’ resiste tal como resistem aqueles e aquelas que o constroem.
Referências bibliográficas
[i] “Coletivo que integra representantes da sociedade civil e atingidos visando ao direito à comunicação. Mensalmente, nos dias 5, são organizados eventos públicos com propostas diferenciadas de integração entre os atingidos e são distribuídos os jornais elaborados por um grupo de atingidos” (Passos et al., 2017, p. 294).
Trenzar Memorias, No. 3, Noviembre, 2022